quarta-feira, 5 de maio de 2010

Desvendando dilemas da inclusão

Desvendando dilemas da inclusão. Para especialista, vale apostar em parceria entre escolas e famílias.

Em entrevista à Inclusive, Maria Antonieta Voivodic comenta a importância das expectativas familiares e da sua interação com o ambiente escolar no sentido de enfrentar os problemas reais que afetam o desenvolvimento das experiências educacionais inclusivas com pessoas com síndrome de Down e outras deficiências intelectuais. As questões foram elaboradas a partir de enquete realizada pela Inclusive em março deste ano. A enquete visava identificar os problemas reais e os falsos dilemas que interferem no processo de inclusão educacional e foi elaborado a partir de sugestões dos leitores, em alusão ao Dia Internacional da Síndrome de Down, comemorado em 21 de março. A entrevista tem como foco as questões pertinentes aos aspectos psicossociais apontados pela enquete e uma nova entrevista está sendo elaborada para abordar os aspectos relativos à formação dos professores, desenvolvimento de políticas públicas e aspectos legais de proteção ao direito fundamental da educação.
Maria Antonieta M. A. Voivodic é psicóloga, pedagoga e psicopedagoga. Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Diretora do Encontro – Centro Integrado de Desenvolvimento Infantil, onde, há mais de vinte anos, trabalha com a inclusão de crianças com deficiência. Professora de Pós-graduação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo onde Coordena o Curso de Pós-graduação em Educação Inclusiva. Ministrou cursos de Inclusão para professores na Rede Municipal de São Paulo e Rede municipal de Campo Grande, no Instituto APAE de São Paulo e no SIEEEESP (Sindicato das Escolas Particulares de São Paulo). Autora do livro “Inclusão Escolar de Crianças com Síndrome de Down” e co-autora do livro “O Aprender e o Não Aprender”, tendo publicado vários artigos sobre educação inclusiva em revistas especializadas.

Inclusive – É uma queixa muito comum nas famílias de alunos com síndrome de Down a constatação de uma baixa expectativa em relação aos potenciais cognitivos destes alunos por parte dos professores e a isto é debitado muito de suas dificuldades. Ou seja, é como se houvesse uma quebra de confiança a priori na relação entre educadores e educandos. Como entende a situação e que tipo de ação educacional e/ou extra-escolar poderia resultar numa visão mais realista e menos pessimista dos potenciais destes alunos?

Maria Antonieta – Infelizmente essa queixa é real. Constatamos que há ainda uma baixa expectativa em relação às possibilidades educacionais desses alunos. A síndrome de Down (SD) ainda é associada à condição de inferioridade, devido a dois importantes fatores. Um deles atribuo à falta de informações sobre a síndrome. Esse fator, em parte, foi superado nos dias de hoje, pois o conhecimento adquirido sobre a síndrome é maior e mais acessível, pelo menos a uma parte da população, embora a grande maioria da população, mesmo conhecendo a síndrome, desconhece as possibilidades das pessoas portadoras da síndrome. Outro fator determinante no preconceito e estereótipo em relação à SD, deve-se à visão da deficiência nos paradigmas do modelo médico, que, com certeza, perdura até hoje, considerando que os problemas da pessoa com deficiência estão em sua própria condição, sendo necessário portanto “tratá-las” para adequá-las aos padrões normais da sociedade. Este quadro só será revertido quando houver uma mudança no paradigma em relação à deficiência, passando a encará-la através do modelo social, que preconiza que os problemas da pessoa com deficiência não estão apenas no indivíduo, mas nas características da sociedade, que cria problemas para a pessoa com deficiência , colocando-a em desvantagem em virtude de ambientes restritivos e discriminatórios. A deficiência em si, no caso a deficiência cognitiva, não deve ser um fator que impeça o aluno de ter as mesmas oportunidades educacionais. O atendimento educacional da criança com SD não pode ser visto através de rótulos e classificações, pois o uso desses estereótipos enfatiza apenas as dificuldades e desvia a atenção de outros fatores que são importantes e podem facilitar a aprendizagem. A baixa expectativa dos professores em relação à aprendizagem desses alunos se concretiza em menor grau de exigência na aquisição de determinadas aprendizagens.
Nesse sentido, Rosenthal e Jacobson realizaram uma experiência interessante, que se tornou famosa. Numa escola de ensino fundamental, no início do ano escolar, aplicaram a todas as crianças das dezoito salas de aula da escola um teste de inteligência. Em cada sala de aula, os psicólogos escolheram 20% das crianças por sorteio, e disseram aos seus professores (que não sabiam da escolha por sorteio) que os resultados do teste destas crianças indicavam que elas poderiam apresentar surpreendentes resultados positivos no desempenho intelectual durante o ano escolar. A única diferença entre estas crianças e as demais era, portanto, a expectativa criada na mente dos professores. No final do ano escolar, todas as crianças da escola foram retestadas com o mesmo teste de inteligência. Em geral, as crianças, cujos professores foram levados a crer que elas mostrariam um grande crescimento no desempenho intelectual, tiveram resultados no teste bem superiores aos das demais crianças da escola. Aquelas crianças, no início do ano letivo, não se destacavam das demais. Mas, esperando que se comportassem como crianças inteligentes e talentosas, os professores as trataram como se elas realmente fossem mais inteligentes e talentosas do que a média, e isto fez toda a diferença!
Vemos portanto que o “olhar” do professor em relação à possibilidade de aprendizagem do aluno, faz toda a diferença. Torna-se prioritário então uma mudança nesse olhar, para que ele se dirija não só ao indivíduo com deficiência, mas a todo o contexto de aprendizagem. Acredito ser fundamental a capacitação e o apoio aos professores para que essa mudança possa ocorrer. Essa capacitação não quer dizer que o professor necessite ser “especialista” em deficiência. Diversas escolas já se conscientizaram da necessidade desse apoio e estão buscando assessorias e capacitando seus professores.
É evidente que a mudança de paradigmas envolve uma mudança na sociedade. Só assim teremos a inclusão que almejamos, em que todas as pessoas, independente de terem ou não deficiência, sejam valorizadas dentro de suas possibilidades e tenham respeitado os seus direitos. Acredito, porém, que a educação, como fator de mudança e transformação do Homem, possa cooperar para que ocorra a mudança ideológica na sociedade. É preciso começar a desencadear a transformação, e creio que o melhor caminho, é começar pela educação.

Inclusive – Sabe-se que estas expectativas também tem como pano de fundo as relações familiares. Como a escola pode ajudar a reestabelecer estes vínculos de confiança em famílias vulneráveis para que os interessados finais, os próprios alunos, possam extrair o máximo proveito em seu processo de ensino-aprendizagem?
Maria Antonieta – As famílias também são atingidas pelo estigma em relação à Síndrome de Down. Esse estigma se reflete tanto na imagem que os pais constroem de sua criança com SD, como em sua reação a ela. Os pais, pertencentes à cultura na qual a pessoa com SD é estigmatizada, têm de seu filho com SD uma imagem carregada de preconceitos presentes nesse estigma. Assim, sua forma de relacionar-se com o filho é determinada pela reação a essa imagem.
Acredito que a família é fundamental para a inclusão da criança com deficiência. São as primeiras experiências da criança, vividas na família, as responsáveis em grande parte por seu desenvolvimento. A família precisa acreditar nas possibilidades da criança e “investir” em sua educação. Isso nem sempre ocorre, pois no caso das crianças com SD, essas primeiras experiências podem ficar comprometidas pelo impacto que produz na família a notícia de ter um filho com essa síndrome, que como já mencionamos, vem carregada do estigma.
Portanto desde o nascimento da criança, incluindo o momento da notícia, essas famílias precisam de apoio e orientação de profissionais. Os grupos de pais de crianças com SD também são de grande auxílio às famílias, pois são um espaço onde podem colocar suas angustias, trocar experiências e se sentirem apoiadas.
Em relação ao papel das escolas com as famílias das crianças com deficiência, acreditamos na grande importância de incluir a família no processo educacional da criança, mostrando suas possibilidades e potencialidades e não suas dificuldades, dando acolhimento e apoio aos pais.
Infelizmente em nossa cultura educacional os pais não são vistos como participantes do processo escolar da criança. Em relação ao aluno com deficiência, muitas vezes, a escola culpabiliza os pais pelas dificuldades apresentadas. Cria-se então um círculo vicioso, os pais culpam os professores por ter baixas expectativas e os professores culpam os pais por não estimularem adequadamente a criança.
Acredito que só alcançaremos resultados efetivos na inclusão do aluno com deficiência e no seu processo de ensino-aprendizagem, se envolvermos a família e aprendermos a ouvir e apoiar os pais. É fundamental que a família e a escola se tornem parceiras nesse processo.

Inclusive – A superproteção é vista muitas vezes como um impeditivo à autonomia da pessoa com síndrome de Down, da infância à idade adulta. Como essa autonomia, sendo um processo que atravessa o desenvolvimento psicológico da pessoa, pode ser trabalhada e desenvolvida ao longo da vida escolar dos alunos com deficiência intelectual?

Maria Antonieta – A super proteção também é resultado de uma baixa expectativa em relação às possibilidades da pessoa com SD. Super protejo e não tenho exigências quando não acredito na possibilidade do outro. A super proteção não é exercida só pelo pais, mas também pela escola. Em relação às pessoas com deficiência intelectual, ainda há o mito de que são “eternas crianças”. Isso não é verdade. É fundamental uma reformulação dessas crenças e estereótipos. As pessoas com deficiência intelectual, assim como todas as pessoas, tem fases em seu desenvolvimento e, em cada fase, apresentam novas necessidades de estimulação e novas exigências devem ser colocadas pelos familiares e educadores. É necessário que os objetivos e estratégias educacionais sejam modificados em cada fase. Só assim seu desenvolvimento ocorrerá e se tornarão pessoas autônomas e preparadas para uma vida independente.
Um fator que coopera com a super proteção e falta de autonomia da pessoa com deficiência é o isolamento social que muitas vezes a família, e até a escola, impõem à esses indivíduos. É fundamental que a pessoa com deficiência tenha uma vida social, participando de grupos e de situações culturais e de lazer.

Inclusive – Muitas famílias temem pela violência que seus filhos podem sofrer nas classes comuns e apontam o buylling como um “fantasma” que ronda a inclusão escolar. Até que ponto esse fantasma existe mesmo ou trata-se de mais um argumento protecionista? Como as escolas estão trabalhando com a questão e que tipo de resultado tem se obtido no cotidiano escolar?

Maria Antonieta – O buylling é um problema sério e tem estado cada vez mais presente em nossas escolas, principalmente na fase da adolescência. Ele não acontece só em relação às pessoas com deficiência, mas atinge qualquer diferença. Vivemos em uma cultura que preconiza padrões, em relação à estética, em relação à comportamentos e também em relação à posse de bens materiais. A mídia tem grande responsabilidade em criar e reforçar esses padrões. A pessoa que, por qualquer motivo, não atende esses padrões, passa a ser vista como “destoante” e muitas vezes se tornam vítimas de buylling.
Vivemos também em uma época em que os padrões morais estão mais frouxos. Os pais e as escolas tem se preocupado muito mais com a informação do que com a formação do indivíduo. Esse é um fator que tem cooperado para o aumento assustador do buylling em nossas escolas.
Porém acredito que o buylling não deva ser visto como um “fantasma”, que seja mais um impeditivo à inclusão escolar. Entendo até, e compartilho, com a preocupação dos pais de alunos com deficiência. Porém creio que o buylling deve ser enfrentado de frente e combatido por pais e educadores, que não podem se omitir diante desse problema. Atitudes protecionistas só dificultarão a inclusão escolar.
Acredito que a inclusão das pessoas com deficiência nas escolas regulares, desde a fase inicial da educação formal, se bem conduzida e trabalhada pelas escolas e famílias, propicie uma melhor aceitação e valorização da diversidade humana, estimulando a cooperação e solidariedade e diminuindo o comportamento de buylling.

Inclusive – A questão do preconceito e atos discriminatórios foi muito debatida no ano passado em função da pesquisa sobre preconceito na escola realizado e divulgado pela FIPE. Como avalia as campanhas contra o preconceito e quais os desafios efetivamente importantes a serem enfrentados para vencê-lo? Em casos de preconceito e atos discriminatórios no ambiente escolar, que atitude cabe à família e à escola nesse tipo de situação?

Maria Antonieta – Temos que considerar que o preconceito em relação às pessoas com deficiência tem raízes na história da humanidade. Portanto as mudanças nesse contexto são lentas e exigem luta, assim como na história da humanidade sempre houve lutas para a garantia de todos os direitos humanos. Todos os indivíduos, com deficiência ou não, devem ter seus direitos respeitados e fazer parte de fato da sociedade. A inclusão pressupõe mudanças nas atitudes das pessoas, na estrutura social e na educação. Pressupõe a valorização da diversidade dentro da comunidade humana.
Nesse sentido são bem vindas as ações que combatam o preconceito e o estigma em relação à deficiência. A mídia, com seu poder de atingir grande número de pessoas e promover mudanças de comportamento, pode ter uma grande participação no combate ao preconceito. Porém ações sensacionalistas e que estimulem o assistencialismo, só geram maior preconceito e exclusão das pessoas com deficiência. Ao contrário, ações que mostrem as possibilidades das pessoas com deficiência e denunciem atitudes de desrespeito aos seus direitos, trazem grande contribuição no combate ao preconceito.
Acredito que todo preconceito e desrespeito aos direitos da pessoa com deficiência, no ambiente escolar ou não, deva ser denunciado ao poder público. Preconceito e discriminação é crime e, como crime, tem que ser severamente combatido. Não podemos mais, com o nosso comodismo, ser coniventes com esse crime. Temos que fazer parte dessa luta para que as pessoas com deficiência tenham seus direitos respeitados, estejam realmente incluídas e fazendo parte da sociedade, acreditado que só com a inclusão seremos mais dignos de nossa humanidade.


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